segunda-feira, 26 de abril de 2010

MÁRTIR DA CAPOEIRA - V

História viva

As páginas dos manuscritos são também uma espécie de diário, a história viva do Centro Esportivo de Capoeira Angola e da saga dos angoleiros na Bahia. Pastinha fala de um início difícil e de conflitos políticos que por pouco não condenaram a capoeira tradicional à extinção. Detalha as intrigas internas que tinha que administrar. Trata das mortes de Amorzinho e Aberrê, que fizeram-no hesitar na continuidade do ousado projeto, até a festejada inauguração do centro, em 1949. “As primeiras camisas foram feitas no Bigode (Brotas), em cores preto e amarelo”, relata Pastinha.
Alguns dos amigos e discípulos ficaram com a herança filosófica de Pastinha, quando da sua morte. A coletânea de manuscritos avulsos foram parar nas mãos do artista plástico Carybé, posteriormente doados a Decânio. O “caderno albo” pertenceu ao deputado Wilson Lins. “Impressionante como ambos continuam atuais. Os escritos de mestre Pastinha são uma prova de que os saberes populares não podem ser considerados menos importantes que os saberes científicos”, opina o educador Pedro Abib. Ainda há outros documentos escritos à mão pelo mestre. No seu acervo, Gildo Alfinete guarda, além de manuscritos, uma enorme lona com caligrafia de Pastinha, a qual era estendida na academia.
De próprio punho, o mestre também fez pinturas em tela. Nos quadros, assim como nos desenhos, utilizou a capoeira para expressar seu tino pelas artes plásticas. O único trabalho que deixou devidamente editado foi um livreto intitulado Capoeira Angola, com publicação em 1964. Dedica os primeiros capítulos à ética e à formação moral do capoeirista. Depois, surpreendentemente, transforma o livro em verdadeiro manual de golpes. Através de fotografias, demonstra cada um dos mecanismos de ataque e defesa da capoeira. Antes, porém, faz uma ressalva. “Não tive a pretensão de descrever a capoeira em suas minúcias, nem fazer capoeiristas com a simples leitura”.

domingo, 18 de abril de 2010

CD FESTIVAIS




Parabéns ao Grupo Equilíbrio pelo lançamento do novo CD "Festivais" que foi realizado no dia 11/04 na Cachaçaria Água Doce em São Vicente!

Confira aqui as fotos do evento!

Que todo axé da capoeira continue levando muito sucesso para o Grupo Equilíbrio, IÊ!

Axé!

MÁRTIR DA CAPOEIRA - IV

Filósofo da capoeira

Como um pensador da cultura popular, Pastinha deixa seus ensinamentos em forma de manuscritos, desenhos, pinturas e até um livro-manual.
A caligrafia simples, perfeitamente legível, é de um sábio envolto em pensamentos intrigantes. Mais do que meros sinais gráficos ou vocábulos de uma língua, são amálgama de conceitos, revelam a complexidade da filosofia popular. Pastinha não foi doutor, acadêmico ou versado em letras, mas era portador de curiosa erudição. Mergulhou no próprio mundo com tal lucidez que transformou-lhe em palavras. “Angola capoeira-mãe, mandinga de escravo em ânsia de liberdade. Seu princípio não tem método, seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”.
Em folhas avulsas ou no seu caderno ilustrado, de capa dura, carinhosamente apelidado de “caderno albo”, elaborou ensinamentos retos, mas também noções abstratas. O título do próprio caderno sugere conteúdo além do palpável: “Quando as Pernas Fazem Miserê – A Metafísica da Capoeira”. “Ele foi o primeiro a conseguir verbalizar a capoeira na sua subjetividade”, examina Pedro Moraes Trindade, o mestre Moraes, mais um dos seus discípulos. Pastinha não conhecia a filosofia cartesiana, mas sobre papel pautado elaborou código de ética sólido. “Conseguiu fazer isso com o sentimento, exatamente como acontece com os zens budistas”, compara Moraes.
Fez verdadeiro contorcionismo intelectual para mostrar vertente filosófica e sociológica da capoeira. Através de metáforas, criou princípios de conduta. Em alguns casos, utilizou estrofes, versos simples, acompanhados de desenhos e ilustrações.






“Eu não sou folha de flandre, nem prato esmaltado, não vou jogar com você porque é mal-educado”.






“Se expressava com poesia. Era também poeta”, exalta Frede Abreu. As rimas, quase todas transformadas em ladainhas, não necessariamente deveriam ser carregadas de apelo moral. Poderiam demonstrar apenas seu amor pela capoeira.







“Eu nasci no sábado, no domingo eu me criei, na segunda-feira, capoeira eu joguei”.






A enorme capacidade de reflexão o fez discorrer longamente sobre assuntos diversos, em alguns casos com conteúdo ainda indecifrável. O próprio Ângelo Decânio Filho, considerado maior conhecedor da obra escrita do mestre, admite a necessidade de um estudo mais profundo. Foi ele o idealizador do livro A herança de Pastinha, no qual transcreve boa parte dos seus escritos e faz alguns comentários. “Ainda há verdadeiros hieroglifos a serem desvendados ali”, assegura. Do que conseguiu extrair, Decânio sintetiza em poucas palavras. “Cidadania, fé e patriotismo. São o tripé filosófico dos seus manuscritos”.
Pastinha escreveu sobre a necessidade de lutar pela nação, criticou a postura omissa dos políticos, reconheceu sua própria pequenez diante da grandiosidade de Deus. “Ê maior é Deus, maior é Deus, pequeno sou eu”. Não se considerava católico, nem do candomblé, mas tinha discurso carregado de religiosidade, quase messiânico.
“A capoeira entre as lutas é a mais amável. Deus designou que fosse pura e bela. Devemos esquecer os hábitos duvidosos. Temos que aprender a guardar bem as entradas de Satanás”.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

MÁRTIR DA CAPOEIRA - III

Segredos do berimbau

A música de Pastinha também seria motivo de estudos, dessa vez através da etno-musicóloga Emília Biancardi. Em 1962, a pesquisadora visitou Pastinha com comissão inteira de alunos do projeto Viva Bahia, primeiro grupo de estudos folclóricos do estado. “Queria que meus alunos aprendessem os segredos do berimbau, a musicalidade da capoeira”. O mestre ensinou com gosto, mas foi além. “Logo nas primeiras aulas já estava na roda, ensinando capoeira”, revela. Não atrapalharia a pesquisa direcionada à música. Emília Biancardi chegou à conclusão de que Pastinha também era excelente compositor de ladainhas e tocador de berimbau, ao contrário do que diziam alguns.
“Tocava de forma tradicional, sem floreios. Não era um virtuoso como Canjiquinha ou Waldemar. Seu berimbau era intimista e sentimental”, define a etno-musicóloga. Era a forma de adequar o som do instrumento ao jogo. Ambos deveriam estar em perfeita consonância. “Capoeira e música eram indissociáveis para Pastinha. Um era o corpo, o outro o espírito”. Ingênuo, também não era capaz de dissociar a camaradagem dos negócios. Não cobrava nada por sábias informações ou pela própria imagem, em fotografias. “Houve quem chupasse a laranja e deixasse o bagaço”, acusa Emília Biancardi. Solícito, o mestre atendia a todos, posava sem saber que era explorado, como nas escadas do avião, satisfeito e sorridente.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Gripe suína, Revolta da Vacina e capoeiras cariocas


Durante os próximos meses iremos voluntariamente ao posto de saúde mais próximo exercer nosso direito de cidadão receber a vacina contra a gripe suína. Porém no início do século passado quando se falava em vacinação a realidade da área da saúde era outra, assim como a realidade dos capoeiras.
Em 1904 saneamento básico era praticamente inexistente nas comunidades pobres e marginalizadas, o que desencadeava diversas epidemias, como de febre amarela e varíola. Para amenizar a situação o então presidente Rodrigues Alves destina o médico Oswaldo Cruz para ser chefe do Departamento Nacional de Saúde Pública que, por sua vez, promove uma campanha de vacinação obrigatória nos morros cariocas com o intuito de melhorar a qualidade de vida da população. A idéia era aparentemente boa. Aparentemente.
A campanha foi promovida de forma violenta e autoritária, onde os agentes sanitários invadiam as casas e aplicavam a força o medicamento naqueles que nem sequer sabiam o que era vacina. Começou, então, a revolta e resistência popular. É nesse ponto que os capoeiras entram.
Os capoeiras cariocas tiveram participação ativa nos conflitos junto com as autoridades sanitárias. Tal atitude agravou a perseguição que já existia tanto historicamente quanto legalmente. Desde 1890, quando nasceu o Código Penal da República, a capoeira era crime, quando começaram verdadeiras caças e prisões aos capoeiras. Todo negro e crioulo pobre poderia ser investigado (inclusive de formas violentas) e condenado por capoeiragem.
Sendo assim, vemos que os capoeiras estiveram presentes na história do nosso país de diversos modos. Infelizmente, por muito tempo, marginalizados e incriminados. Apesar de a capoeira ter deixada de ser crime em 1937 o preconceito se perpetuou e demorou 80 anos para ser valorizada ao ponto de virar patrimônio nacional.
Que tentemos, cada vez mais, valorizar nossa bonita cultura sem deixar de exercer nossos direitos! Vacinem-se!
Por: Nayara Araujo

terça-feira, 6 de abril de 2010

MÁRTIR DA CAPOEIRA - II

Alimento cultural

A admiração era recíproca. A intelectualidade também ia se “alimentar culturalmente” no Centro Esportivo de Capoeira Angola. Carybé, artista plástico, chegou a planejar edição de livro ilustrado com Pastinha. Camafeu de Oxóssi, boêmio, conhecido angoleiro, dos melhores mestres de canto da Bahia. Wilson Lins, o deputado, apoiava politicamente as atribuições do mestre. Pierre Verger, o francês radicado na Bahia, fascinado pelo jogo. “Ele fez da capoeira algo decente”, elogiava Verger. Nada seria comparável, porém, à declarada afeição por Jorge Amado. Superaram os limites da boa convivência e construíram amizade sincera.
O escritor cita Pastinha em pelo menos quatro de suas publicações. Em Navegação de cabotagem, o coloca em pé de igualdade com alguns dos maiores gênios de todo o mundo, os quais conhecia pessoalmente: “Privei com alguns dos mestres, dos verdadeiros, do universo da ciência, das letras, das artes. Picasso, Sartre, Joliot, meu privilégio foi tê-los conhecido. Não menor o apanágio de ter merecido a amizade dos criadores da cultura popular da Bahia(...), de acompanhar Pastinha até a última roda de capoeira angola”. Depois, em Bahia Boa Terra Bahia, parceria com Flávio Dan, volta a aclamá-lo, dessa vez em prosa quase lírica:
“De repente um salto, uma volta sobre si mesmo, o pé solto no ar, o corpo leve, um passo de balé, cadê o adversário? Quem teve a aventura de ver mestre Pastinha na roda da capoeira, quem assistiu ao maravilhoso espetáculo de sua luta, quem o viu diante dos berimbaus a comandar seus alunos, teve o privilégio de conhecer o capoeirista perfeito, o primeiro, sem segundo”. Pastinha e Jorge Amado conversavam por horas e horas, nas janelas dos casarões do Pelourinho ou na casa do escritor, no Rio Vermelho. Zélia Gattai chegou a registrar em fotografia alguns desses encontros.
As primeiras críticas não demoraram a aparecer. O reconhecimento dos brancos faz outros mestres angola torcerem o nariz para Pastinha. Waldemar, Cobrinha Verde, Canjiquinha e Caiçara afirmam não concordar com seus métodos, queriam a capoeira dos guetos. Pastinha responde à altura. “Com franqueza, é tempo de zelar pelo esporte”. Os demais tiveram que se adequar à sua didática. Ainda hoje os grupos de capoeira angola, sem exceção, seguem o seu modelo. “A forma de educação criada por Pastinha foi baseada em princípios éticos, estéticos, filosóficos e humanos aplicados de forma muito profunda. Tudo que tem profundidade permanece por muito tempo”, julga o educador Pedro Abib.
Pastinha teve estudo deficiente, cursou apenas alfabetização, mas compensava com a sabedoria. A própria postura era de intelectual. “Um gentleman, homem fino”, atesta Gildo Alfinete. Poderia discutir sobre qualquer assunto, com qualquer um que o interpelasse. Estudiosos do mais alto gabarito iam à sua procura. Outros, chama a atenção Ângelo Decânio, realizavam trabalhos irresponsáveis servindo-se do seu nome. “Pastinha foi utilizado por muita gente inescrupulosa como alavanca social. Isso desgastava o mestre, que era desprovido de ambições políticas”.
O folclorista Waldeloir Rego faria diferente. Realizou ensaio socio-etnográfico completo sobre a capoeira angola e suas origens. Em alguns momentos, Waldeloir discorre longamente sobre sua inteligência, mas também sobre suas qualidades como capoeirista. Para tanto, recorre a citação de Jorge Amado: “Mestre Pastinha tem mais de 70 anos. É um mulato pequeno de assombrosa agilidade, de resistência incomum. Quando ele começa a brincar, a impressão dos assistentes é que aquele pobre velho, carapinha branca, cairá em dois minutos, derrubado pelo jovem adversário ou pela falta de fôlego. Ledo e cego engano. Os adversários sucedem-se, e ele os vence a todos”.