domingo, 18 de abril de 2010

MÁRTIR DA CAPOEIRA - IV

Filósofo da capoeira

Como um pensador da cultura popular, Pastinha deixa seus ensinamentos em forma de manuscritos, desenhos, pinturas e até um livro-manual.
A caligrafia simples, perfeitamente legível, é de um sábio envolto em pensamentos intrigantes. Mais do que meros sinais gráficos ou vocábulos de uma língua, são amálgama de conceitos, revelam a complexidade da filosofia popular. Pastinha não foi doutor, acadêmico ou versado em letras, mas era portador de curiosa erudição. Mergulhou no próprio mundo com tal lucidez que transformou-lhe em palavras. “Angola capoeira-mãe, mandinga de escravo em ânsia de liberdade. Seu princípio não tem método, seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”.
Em folhas avulsas ou no seu caderno ilustrado, de capa dura, carinhosamente apelidado de “caderno albo”, elaborou ensinamentos retos, mas também noções abstratas. O título do próprio caderno sugere conteúdo além do palpável: “Quando as Pernas Fazem Miserê – A Metafísica da Capoeira”. “Ele foi o primeiro a conseguir verbalizar a capoeira na sua subjetividade”, examina Pedro Moraes Trindade, o mestre Moraes, mais um dos seus discípulos. Pastinha não conhecia a filosofia cartesiana, mas sobre papel pautado elaborou código de ética sólido. “Conseguiu fazer isso com o sentimento, exatamente como acontece com os zens budistas”, compara Moraes.
Fez verdadeiro contorcionismo intelectual para mostrar vertente filosófica e sociológica da capoeira. Através de metáforas, criou princípios de conduta. Em alguns casos, utilizou estrofes, versos simples, acompanhados de desenhos e ilustrações.






“Eu não sou folha de flandre, nem prato esmaltado, não vou jogar com você porque é mal-educado”.






“Se expressava com poesia. Era também poeta”, exalta Frede Abreu. As rimas, quase todas transformadas em ladainhas, não necessariamente deveriam ser carregadas de apelo moral. Poderiam demonstrar apenas seu amor pela capoeira.







“Eu nasci no sábado, no domingo eu me criei, na segunda-feira, capoeira eu joguei”.






A enorme capacidade de reflexão o fez discorrer longamente sobre assuntos diversos, em alguns casos com conteúdo ainda indecifrável. O próprio Ângelo Decânio Filho, considerado maior conhecedor da obra escrita do mestre, admite a necessidade de um estudo mais profundo. Foi ele o idealizador do livro A herança de Pastinha, no qual transcreve boa parte dos seus escritos e faz alguns comentários. “Ainda há verdadeiros hieroglifos a serem desvendados ali”, assegura. Do que conseguiu extrair, Decânio sintetiza em poucas palavras. “Cidadania, fé e patriotismo. São o tripé filosófico dos seus manuscritos”.
Pastinha escreveu sobre a necessidade de lutar pela nação, criticou a postura omissa dos políticos, reconheceu sua própria pequenez diante da grandiosidade de Deus. “Ê maior é Deus, maior é Deus, pequeno sou eu”. Não se considerava católico, nem do candomblé, mas tinha discurso carregado de religiosidade, quase messiânico.
“A capoeira entre as lutas é a mais amável. Deus designou que fosse pura e bela. Devemos esquecer os hábitos duvidosos. Temos que aprender a guardar bem as entradas de Satanás”.

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