terça-feira, 6 de abril de 2010

MÁRTIR DA CAPOEIRA - II

Alimento cultural

A admiração era recíproca. A intelectualidade também ia se “alimentar culturalmente” no Centro Esportivo de Capoeira Angola. Carybé, artista plástico, chegou a planejar edição de livro ilustrado com Pastinha. Camafeu de Oxóssi, boêmio, conhecido angoleiro, dos melhores mestres de canto da Bahia. Wilson Lins, o deputado, apoiava politicamente as atribuições do mestre. Pierre Verger, o francês radicado na Bahia, fascinado pelo jogo. “Ele fez da capoeira algo decente”, elogiava Verger. Nada seria comparável, porém, à declarada afeição por Jorge Amado. Superaram os limites da boa convivência e construíram amizade sincera.
O escritor cita Pastinha em pelo menos quatro de suas publicações. Em Navegação de cabotagem, o coloca em pé de igualdade com alguns dos maiores gênios de todo o mundo, os quais conhecia pessoalmente: “Privei com alguns dos mestres, dos verdadeiros, do universo da ciência, das letras, das artes. Picasso, Sartre, Joliot, meu privilégio foi tê-los conhecido. Não menor o apanágio de ter merecido a amizade dos criadores da cultura popular da Bahia(...), de acompanhar Pastinha até a última roda de capoeira angola”. Depois, em Bahia Boa Terra Bahia, parceria com Flávio Dan, volta a aclamá-lo, dessa vez em prosa quase lírica:
“De repente um salto, uma volta sobre si mesmo, o pé solto no ar, o corpo leve, um passo de balé, cadê o adversário? Quem teve a aventura de ver mestre Pastinha na roda da capoeira, quem assistiu ao maravilhoso espetáculo de sua luta, quem o viu diante dos berimbaus a comandar seus alunos, teve o privilégio de conhecer o capoeirista perfeito, o primeiro, sem segundo”. Pastinha e Jorge Amado conversavam por horas e horas, nas janelas dos casarões do Pelourinho ou na casa do escritor, no Rio Vermelho. Zélia Gattai chegou a registrar em fotografia alguns desses encontros.
As primeiras críticas não demoraram a aparecer. O reconhecimento dos brancos faz outros mestres angola torcerem o nariz para Pastinha. Waldemar, Cobrinha Verde, Canjiquinha e Caiçara afirmam não concordar com seus métodos, queriam a capoeira dos guetos. Pastinha responde à altura. “Com franqueza, é tempo de zelar pelo esporte”. Os demais tiveram que se adequar à sua didática. Ainda hoje os grupos de capoeira angola, sem exceção, seguem o seu modelo. “A forma de educação criada por Pastinha foi baseada em princípios éticos, estéticos, filosóficos e humanos aplicados de forma muito profunda. Tudo que tem profundidade permanece por muito tempo”, julga o educador Pedro Abib.
Pastinha teve estudo deficiente, cursou apenas alfabetização, mas compensava com a sabedoria. A própria postura era de intelectual. “Um gentleman, homem fino”, atesta Gildo Alfinete. Poderia discutir sobre qualquer assunto, com qualquer um que o interpelasse. Estudiosos do mais alto gabarito iam à sua procura. Outros, chama a atenção Ângelo Decânio, realizavam trabalhos irresponsáveis servindo-se do seu nome. “Pastinha foi utilizado por muita gente inescrupulosa como alavanca social. Isso desgastava o mestre, que era desprovido de ambições políticas”.
O folclorista Waldeloir Rego faria diferente. Realizou ensaio socio-etnográfico completo sobre a capoeira angola e suas origens. Em alguns momentos, Waldeloir discorre longamente sobre sua inteligência, mas também sobre suas qualidades como capoeirista. Para tanto, recorre a citação de Jorge Amado: “Mestre Pastinha tem mais de 70 anos. É um mulato pequeno de assombrosa agilidade, de resistência incomum. Quando ele começa a brincar, a impressão dos assistentes é que aquele pobre velho, carapinha branca, cairá em dois minutos, derrubado pelo jovem adversário ou pela falta de fôlego. Ledo e cego engano. Os adversários sucedem-se, e ele os vence a todos”.

Nenhum comentário: