quinta-feira, 10 de junho de 2010

MÁRTIR DA CAPOEIRA - XI

Tradição reinventada

Mudanças implementadas por Pastinha condenam a violência e valorizam a ludicidade da tradição afro.
Em preto-e-branco as imagens são ainda mais nostálgicas, revelam passos saudosos de um “bêbado” alucinante, evidenciam a ginga inconfundível de um bailarino, mais que lutador. Na ponta dos pés, Pastinha joga a capoeira que se perdeu no tempo, não existe mais. Os alunos estão reunidos na roda, têm o mesmo figurino, são atores de verdadeira peça teatral, tão artística quanto perigosa. O mestre, porém, tem cuidado, dá balão, projeta o corpo do adversário para o alto, escora para que aterrise no chão com segurança.
As gravações em película são de 1949. O filme de Alceu Maynard não tem mais do que 15 minutos, mas é uma das raríssimas gravações em que Pastinha aparece em ação. Ali a brutalidade já havia sido banida das rodas do mestre. O estilo Pastinha é lento, cadenciado, sem que necessariamente seja preciso atingir o adversário. “Tem que fazer que vai e não vai quando menos se espera”, sugeria. Pensou a capoeira para que fosse aceita por todos, sem exceção. “É pra homem, menino e mulher. Só não joga quem não quer”. Na roda em que Pastinha era o mestre, quase tudo não passava de representação, era brincadeira controladamente arriscada.
“Repare nos movimentos. O lúdico é que interessa. As alterações deram vazão a um teatro na roda”, observa o pesquisador Frede Abreu, ao examinar a relíquia em vídeo. Abreu se refere às transformações no modelo de praticar a capoeira tradicional, pelas quais Pastinha foi o maior responsável. “Diferente do que muita gente pensa, ele não criou a angola, criou um tipo específico dentro da capoeira, mais condizente com os preceitos tradicionais”, esclarece. De fato, Pastinha é educador da roda, torna elegante e civilizado os modos de jogar.
Para tanto foi preciso voltar no tempo, reinventar antiga tradição. Como guardião dos segredos de angola apresentava sua capoeira como original, pura, fruto da experiência africana e escrava no Brasil. Buscou traços primitivos nos rituais religiosos dos candomblés, nas danças dos ancestrais e até nos movimentos dos bichos. “Nessas práticas estariam a essência da capoeira. Com elas teria ganhado movimentos lúdicos e de defesa”, aposta o antropólogo Antônio Liberac. Ao adequar os ritos africanos às regras do jogo, criou modelo único e inovador.

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