segunda-feira, 24 de maio de 2010

MÁRTIR DA CAPOEIRA - IX

Revolta e amargura

Matéria histórica do jornal A Tarde, em 5 de junho de 1980, trouxe título lacônico: “O desabafo do mestre”. Perguntado sobre as condições em que se encontrava a capoeira baiana à época, responderia em tom de revolta e amargura. “A capoeira de nada precisa. Quem precisa sou eu”. De fato, a prática havia ganho status e reconhecimento. Justamente os “velhos mestres”, que haviam lhe dado condições de crescer, não colheram seus frutos. “A capoeira baiana em alta no mercado, enquanto os mantenedores de sua tradição, como eu mesmo, morrendo em estado de severa pobreza”.
Como espécie de maldição, Pastinha teve o mesmo fim de Amorzinho, Aberrê, Waldemar, Cobrinha Verde e do regional mestre Bimba. Como eles, também seria ridicularizado por alguns dos próprios alunos. “Na viagem à África seu Pastinha já não enxergava bem. João grande disse que José Gato e os outros comiam o peixe do prato dele e deixavam só as espinhas”, delata mestre João Pequeno, em tom de lamentação. Pela imprensa, teve a sua condição de mestre questionada. Foi diminuído a tomador de conta de roda: “Pastinha é uma invenção da mídia”. “Pastinha, bom ou mau capoeirista?”. Mesmo doente, responde aos ataques: “Despeitados: Quem pode dizer que não sou mestre. Sou mestre com a permissão dos antigos”.
Provaria isso cego. “Sem enxergar, jogava no tato”, testemunha o mestre Boca Rica. Em visita a Salvador, o jornalista Roberto Freire se surpreenderia com aquele velhote, que em vez de bengala branca usava a intuição para continuar superando adversários. “Ele lutava cego. Os alunos mantinham distância e pensei que fosse respeito. Até que um deles me disse: ‘Se a gente chegar mais perto, leva’”, narra Freire. Participaria de rodas de capoeira até quando suportasse. Impossibilitado de andar, recolher-se-ia aos precários aposentos, pondo-se apenas a pensar como um rabino.
Sábio, até o final dos seus dias, Pastinha filosofou sobre a particular decadência. Desenvolveu reflexão sobre o próprio infortúnio. Em matéria do jornal A Tarde, com subtítulo “Tateando no Escuro”, o mestre tenta explicar a tragédia em que havia se enterrado. “Engraçada a vida. A fama chegou para mim (...) No princípio sentia uma vaidade e pensava: formidável, todos falam de mim, um mulatinho filho de escravo. Terrível é descobrir que tudo isso é falso. A única coisa real foi a capoeira”.

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