quinta-feira, 13 de maio de 2010

MÁRTIR DA CAPOEIRA - VII

Mestre sacerdote

Inteligência diferenciada e dedicação religiosa à capoeiragem elevam mestre Pastinha à condição de maior símbolo da prática angoleira.
-Tem jeito não, Pastinha... É você mesmo que vai tomar conta disso aqui...
As palavras de Totonho de Maré soaram como um decreto. Reforçaram o insistente convite de mestre
Amorzinho, dono da capoeiragem, o qual cumprimentou Pastinha com forte aperto de mão, seguido da surpreendente proposta.
- Há muito que eu esperava para lhe entregar essa capoeira para o senhor mestrar...
Sabiam de sua inteligência. Eram mestres da antiga Gengibirra, ponto de encontro dos maiores capoeiristas de Salvador nas primeiras décadas do século passado. Amorzinho, Maré, Noronha, Aberrê, Livino e tantos outros reconheceram à sua frente não apenas um transmissor de ensinamentos práticos, mas um homem de avançada sabedoria, capaz de conduzir os destinos da capoeira angola, tirando-a da marginalidade. “Eles viram em Pastinha um sujeito de visão. Por isso entregaram a ele a missão de reerguer uma prática que andava esquecida”, explica o pesquisador Frede Abreu, idealizador do Instituto Jair Moura, o maior acervo de capoeira do mundo.
Como um sacerdote, Vicente Ferreira Pastinha doou-se com abnegação religiosa à incumbência que lhe foi conferida, a ponto de sacrificar a própria vida pela sua obra. Chamado à Galanteria da Capoeira, conforme nomeou Maré, se transformaria num ícone para as futuras gerações, o exemplo a ser seguido. Transmitiu o dom sagrado aos seus alunos e proferiu aos quatro cantos a filosofia dos seus ancestrais. Não seria apenas o responsável por manter de forma ortodoxa a estética lúdica angoleira. Iria além. Ao levar para o dia-a-dia os truques e artimanhas da roda, faria da própria vida um eterno embate de capoeira. Pastinha era impregnado da astúcia que compunha o sistema simbólico do jogo.
A própria fala, com voz arrastada, denunciava entremeado de idéias carregado de simulações e metáforas. “Capoeira é mandinga, é manha, é malícia. É tudo que a boca come...”, definiu. “Respirava capoeira. Com ele não tinha duas conversas”, confirma Manuel Silva, o mestre Boca Rica, 70 anos, um dos seus mais antigos discípulos. Pastinha não queria fazer da prática simples arte marcial. Utilizou a luta como forma de apreensão da realidade. Fez-se filósofo. “Ninguém pode mostrar tudo que tem. As entregas e revelações devem ser feitas aos poucos. Isso serve na capoeira, na família, na vida”, ensina, em um dos inúmeros manuscritos que deixou como herança.
Durante as quatro décadas que esteve à frente do Centro Esportivo de Capoeira Angola (Ceca), academia que funcionou por 18 anos no Largo do Pelourinho, número 19, Pastinha procedeu como autêntico “velho mestre”. O termo refere-se aos fundadores da tradição afro-baiana de praticar capoeira, a exemplo dos que se reuniam na Gengibirra, no bairro da Liberdade. “Naquele tempo para ser mestre na arte da capoeira tinha que ser artista na vida”, escreve Frede Abreu em um dos seus artigos. Pastinha não só seguiria esse preceito à risca como o tornou patente para os seus seguidores.
Sem negar as tradições, criou nova forma de ensino. Adaptou à sua pedagogia características de esporte. Lhe deu, literalmente, nova roupagem. Seus alunos usavam uma espécie de “hábito” com as cores amarela e preta, em homenagem ao clube do coração, o Ypiranga. Deveriam estar com as vestimentas impecáveis. Pastinha não tolerava o desleixo. “O jogo precisa ser jogado sem sujar a roupa, sem tocar o corpo no chão”, aconselhava. Assim instituiu verdadeiros dogmas, criou preceitos, pregou obediência quase cega às regras. Era a resposta à capoeira regional, criada por mestre Bimba.
A gênese de eterna rivalidade se deu quando Pastinha tornou os angoleiros reconhecidos, assim como Bimba fez com os regionais. “Regional e angola, cisões na capoeira, problema de difícil solução. Melhor gingar, passar pra outro parágrafo...”, ironizou o antropólogo Antônio Liberac, no livro Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá, que desvenda a vida dos três maiores nomes da capoeira na Bahia. O terceiro capítulo dedicado a Pastinha revela a trajetória de um homem que mudou os rumos da capoeira angola, tendo rompido com os capoeiristas desordeiros que aterrorizavam a antiga Salvador.
Sua academia ganhou notoriedade, virou centro de grande reputação. Passou a ser freqüentada por intelectuais, políticos e artistas. A fama não o fez acumular riquezas, nem representaram a quebra com os antigos valores. Ao contrário, as rodas organizadas por Pastinha se mantiveram como um ritual, quase como um culto. “Era um místico. Vivia a capoeira com intensidade e realizava a sua própria interpretação daquele universo”, observa o artista plástico Mário Cravo, visitante assíduo.
Homem bom, afetuoso, civilizado, como testemunhou em vários depoimentos o escritor e amigo Jorge Amado. “Mestre Pastinha, mestre da capoeira de angola e da cordialidade baiana, ser de alta civilização, homem do povo com toda sua picardia, é um dos seus ilustres...”, escreveu, em Bahia de Todos os Santos. O próprio mestre não recomendava outro tipo de comportamento para os seus discípulos. “Pratico a verdadeira capoeira de angola e aqui os homens aprendem a ser leais e justos...”.
Nada o faria abandonar, porém, a origem maliciosa. Pastinha reconhecia na capoeira feição perversa. “O que serve para a defesa também serve para o ataque”. Cresceu com a malandragem das ruas. “Era o seu espaço desde criança. Impossível não assimilar o mundo cheio de malícia”, diz a historiadora Adriana Albert Dias. Tal convivência o teria levado, em 1902, para a Marinha, destino de boa parte dos adolescentes da época. “Foi parar nas Forças Armadas para entrar no eixo”, acredita Adriana. Aos 12 anos, ensinava capoeira para os colegas, na Escola de Aprendizes de Marinheiro.
Nasceu em 5 de abril de 1889. Filho de um espanhol, José Senor Pastinha, e da negra Raimunda dos Santos, viveu na Rua do Tijolo, no Centro Histórico, atual 28 de Setembro. Além de pintor de paredes, Pastinha trabalhou também no jogo do bicho, foi leão-de-chácara, contravenção prevista no Código Penal à época. Aprendeu capoeira para livrar-se de um rival, mais velho e mais taludo. “Entrávamos em luta e eu sempre levava a pior”. Um escravo octogenário, o negro Benedito, assistia tudo a distância. Certo dia, o chamou para dentro do seu “canzuá”, na Rua das Laranjeiras.
“Ocê não pode brigar com aquele menino, aquele menino é mais ativo que ocê, aquele menino é malandro. O tempo que você perde empinando raia vem aqui que eu vou te ensinar capoeira”, incitou. A partir dali não deixaria mais de lutar, nem quando a polícia importunava as rodas no meio da rua, conforme descreve antiga matéria do jornal A Tarde. “Nos tempos de jovem, em que a mocidade freqüentava o famoso Campo da Pólvora, Vicente Pastinha fechou o tempo muitas vezes, pondo por terra vários policiais de uma só vez”. Era a prova de que se tratava também de exímio capoeirista, apesar da estatura diminuta: 1,56m.
“Dos antigos, não tinha nenhum pra pular na frente dele”, garante mestre João Pequeno, 89 anos, seu mais velho discípulo. “Na hora da precisão fazia miserê com as pernas”, relata mestre João Grande, 76 anos, que junto com Pequeno leva à frente seus ensinamentos. O próprio Pastinha desafiava. “Ninguém ainda me botou no chão e nem ainda vai botar”. Salteou os adversários mas não conseguiu contragolpear os dois derrames cerebrais, acompanhados da cegueira. Em 1966, na histórica viagem à África, daria seu último suspiro glorioso. Mostrou a capoeira do Brasil para os africanos.
Sem enxergar, conheceu a escuridão do abandono. Além de Jorge Amado e da terceira esposa, Maria Romélia, poucos o ajudaram no final da vida. Sem filhos, traído pelo governo, terminou no isolamento, na penumbra de quarto úmido, num casario do Pelourinho. Nem de longe era aquele Pastinha que, em 1941, adentrou a Galanteria da Capoeira e assumiu o disputado clã. Ali, à frente de Amorzinho, Maré, Noronha, Livino e outros tantos, comprometeu-se em passar adiante o que havia herdado dos escravos. Conta-se que, ao longo de 92 anos de vida, formou mais de dez mil alunos. Cumpriu rigorosamente a missão de mestre sacerdote.

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